Joaquim, o Grande
A luz parda de um dia qualquer de Outubro encobria o velho palheiro de granito num imenso oceano de monotonia. Lá dentro, dormia Joaquim, O Grande, conjuntamente com o colossal vazio de nenhuns pertences. Deste vazio, apenas se destacava a sua motorizada. Uma Saches Fuego gasta, cansada de tantas quedas e acrobacias. Porém, mantinha-se exemplar em tudo o que qualquer outra motorizada podia fazer de melhor. O Joaquim costumava dizer do alto dos seus 2 metros e 8 centímetros que esta tinha a particularidade de conhecer demasiado bem o seu dono, assim como as estradas e caminhos de pó por onde circulava. Sim, o Joaquim media 2 metros e 8 centímetros. Tinha uns braços finos e compridos, desajeitados e umas mãos que mais faziam lembrar duas enormes raízes desconexas e desarticuladas do corpo que as sustia. As suas pernas faziam lembrar as de uma cegonha. E desde o alto, oscilava um pequeno crânio desproporcional a todo este monumento, que era o seu desconexo corpo. Quando conduzia a sua motorizada, os joelhos atrapalhavam e roçavam no volante, que ele teimava em inclinar para trás. Era um autêntico alienígena que no imenso ruído se fazia transportar a toda a velocidade pelas estradas da Vila. Apenas pelo sôfrego ruído da motorizada cansada e gasta a subir as íngremes rampas da encosta da Vila, toda a gente já sabia que era o Joaquim, O Grande, na sua motorizada Saches Fuego bege-gasto. Depois, entrava na taberna e pedia uma mini sagres e dobrava aquele colossal tronco sob o balcão e ali ficava até já mal articular as palavras devido à dose excessiva de minis que tinha bebido. Abandonava a taberna imitando um velho tronco de uma árvore contorcida e arrancava na sua motorizada com a ajuda das compridas pernas, arrastando-as como duas muletas. E assim evitava alguma queda mais que prevista. Para além deste percurso quotidiano, o Joaquim era um homem triste e sozinho. Não tinha família e vivia num palheiro emprestado pela caridade de um dos seus cúmplices de bebedeiras. Sempre que ultrapassava a volumetria de uma simples bebedeira, silvava alfabetos estranhos e chorava até cair inanimado. O mundo não tinha lugar para aquele colossal corpo caído desarticulado na calçada húmida. Eram necessários pelo menos cinco homens para o levantar e o sentar decentemente num dos bancos corridos de madeira da taberna. Passados estes árduos trabalhos, já sentado, adormecia como uma criança abandonada. Todos na taberna ficavam ali a admirar o monstro que dormia como uma criança triste.
Nunca ninguém lhe ouviu uma única palavra de lamento, mesmo quando lhe aconteciam as maiores desgraças, ou seja, quedas da motorizada, falta de dinheiro, falta de roupa, etc. Respondia sempre ao mundo com um desmesurado sorriso proporcional ao seu corpo. Numa manhã de Junho aquele colossal corpo sucumbia dentro daquela triste casa, no meio de um velho colchão coberto com uma manta gasta. Morte natural escreveu o médico. Minutos antes de fechar os olhos para todo o sempre teve um daqueles fatídicos pressentimentos e decidiu de vez disparar… uma velha máquina fotográfica que lhe tinha dado há muitos anos um velho amigo emigrante. Mais tarde, quando o Lúcio decidiu recolher todos os destroços do que restava desta gigante vida, encontrou a velha máquina pousada num pequeno apoio ao lado da sua cama. À saída da loja de fotografia, à medida que caminhava ia folheando cada uma daquelas enigmáticas imagens. Destas, apenas guardou uma que lhe pareceu visualizar, embora de uma forma desfocada, o rosto sorridente do Joaquim. O resto deitou fora. Foi com este enigmático sorriso que o Joaquim se tinha despedido da vida e que agora, por iniciativa de todos os seus companheiros da taberna, pairava em cima da sua solitária sepultura, encaixilhado numa pequena moldura. Na taberna dizia-se que até na morte o Joaquim tinha sido Grande, pois não havia sorriso no cemitério como o do Joaquim, O Grande.