domingo, novembro 30, 2008

da colectânea de contos "a morte, a minha princesa"

eddy chambino



o coração de plástico


“Blitch mnic tri bur trom desawer trunccmippfret”. Soletrava este estranho alfabeto ao mesmo tempo que vincava as profundas rugas da pele amarelada do rosto com um sorriso leve. – Esta língua só eu a sei falar. Dizia para os jovens que estavam sentados à sombra do velho choupo e que balbuciavam a sua alcunha – Malta, malta, chegou o Coração de Plástico! Os jovens riam-se e metiam-se com ele, que seguia com o seu passo curto e lento com um balde na mão, cheio de farelo misturado com restos de fruta e vegetais na direcção do galinheiro. De regresso, já vinha mais equilibrado, o balde vinha vazio e a singular postura tinha ocupado o volume normal naquela rua íngreme. Uma das mãos vazias tinha regressado ao habitual pouso, que era no peito, sensivelmente por cima do lugar do coração, onde os quatro dedos ficavam no interior da roupa, ficando apenas de fora o polegar, ou seja, a mão ficava apoiada no botão central do velho casaco consumido pelos anos. Na cabeça, poisava há muitos anos um decrépito chapéu preto que teimava em permanecer ali para sempre. Ao passar pelo mesmo grupo, tornou a soletrar aquele alfabeto ficcionado. Depois de algumas explicações ocas e de algumas gargalhadas, um dos jovens fez-lhe a pergunta de sempre – Porquê que você anda sempre com essa mão ai enfiada no casaco? Até parece que anda sempre a esconder qualquer coisa? A sua postura ficou rígida e respondeu com um ar sério mesclado com tons de cores visionárias – Sabes rapazola, é que eu sou doente do coração, tenho um coração de plástico e tenho esta mania de o proteger, é um coração mas é também um coração frágil, fraquinho. Os jovens permaneceram durante um pequeno instante em silêncio a observa-lo, como se tivessem sido hipnotizados por aquelas estranhas palavras, mas de imediato o feitiço quebrou e um deles desatou a rir e todos recomeçaram a fanfarra de sempre – Você está a mentir, ninguém pode ter um coração de plástico, muito menos você. E continuaram a rir desmesuradamente. O Coração de Plástico retomou o seu rumo na direcção da rua principal, desceu a leve inclinação, passou pelo café e seguiu na direcção do adro da igreja. Depois de ter cruzado o amplo largo vazio e de ter tirado o decrépito chapéu em sinal de respeito junto à porta da igreja, acelerou o passo e foi cagar debaixo de uma oliveira, como habitualmente fazia e como desejava sempre fazer. Feitas as necessidades, rumou decidido a calcorrear as estreitas ruas até chegar a sua casa. A mulher já o esperava sentada no reduzido degrau da pequena casa. Quando vislumbrou a sua figura franzina na mira da esquina, soltou um dos seus berros característicos – São horas Gabriel? Os ovos já estão frios, agora comes a comida fria, pobre diabo! Ele apenas oscilou a cabeça no sentido do degrau da entrada da casa e dirigiu-se para a mesa onde estavam dois pequenos pratos tapados com um pano quadrado. Depois de comer a sua desatenção fria, mais uma vez, foi-se sentar próximo da mulher numa cadeira para ai cumprir o ritual de todas as noites, o ritual da televisão e do adormecimento. Ouviam atentamente as notícias do mundo. Os dois espantavam-se amiúde com este mundo televisionado, muitas vezes escancaravam os olhos em demasia e as imagens engasgavam-nos severamente, obrigando-os mesmo a fechar os olhos durante uns instantes para assim poderem mastigar toda aquela impossível realidade. Naquela continuidade noticiosa o locutor soletrou um nome que lhes era bastante familiar – Ouviste o que ele disse? Parece que falou no nome da nossa terra – Parece que sim, também o ouvi nomear o nome da nossa terra! Respondeu ele com o corpo inclinado para a frente e com um ar atento. Anunciava, o repórter da televisão, a presença no dia seguinte do Presidente da Republica para inaugurar o novo Mercado da Vila – Isto é amanhã às 10 horas, já tinha ouvido falar ali na Praça – Tu ouves falar de tudo, estás sempre com os ouvidos à escuta. Grunhiu ela com um ar sisudo. Tinham passado duas horas e o reflexo intermitente das imagens da televisão reflectia agora com violência naqueles dois rostos derrotados pela letargia da ocasião.
Na manhã seguinte, eram 7 horas e o Gabriel já estava pronto para sair de casa. Balbuciou algumas palavras matinais e fez-se ao caminho, com o balde do farelo e alguns restos, na direcção do galinheiro. Despachou-se num ápice e deixou o balde atrás da pequena porta, tinha intenção de voltar mais tarde, talvez depois da dita inauguração. Já na Praça ouviu dizer que havia comes e bebes e por ali ficou entretido a ouvir as conversas. O tique da mão enfiada no meio do casaco, em jeito de protecção do seu falso-verdadeiro-coração de plástico permanecia. Chegada a hora da dita inauguração as pessoas foram-se dirigindo para o referido local. Junto à porta, começaram a ocupar lugares estratégicos para poderem ver o importante acontecimento – Já chegaram os peixes graúdos, disse um dos transeuntes com uma cara de troça. Viu passar um grupo de homens bem vestidos, reconheceu o Presidente da Republica, acompanhado pelo Presidente da Vila conjuntamente com outras figuras conhecidas. Limitou-se a seguir a vertigem da corrente para dentro do novo edifício. Cheirava a tinta fresca. Já dentro da enorme sala, ouviu-se um discurso, bateu palmas e dirigiu-se para a mesa. Próximo da mesa começou a sentir-se mal, sentia tonturas que iam aumentando gradualmente a sua indisposição, uma dor aguda penetrou-lhe no peito e caiu inanimado. Uma multidão começou a oscilar até junto do seu frágil corpo – Desviem-se, deixem o homem respirar – Chamem uma ambulância – É o Coração de Plástico que desmaiou – Se calhar já bebeu demais. O fatídico acontecimento chegou ao Presidente da Republica, que era médico de profissão. Dirigiu-se rapidamente até ao lugar onde se amontoavam cada vez mais pessoas – Desviem-se, deixem passar o Senhor Presidente, ele é médico. Abriram a muito custo uma clareira para que o Presidente pudesse chegar ao respectivo corpo inanimado. Quando o vislumbrou, com aquela mão encaixada no peito, pálido, sentiu que algo lhe tinha acontecido de mais grave. Iniciou de imediato todos procedimentos médicos. Apalpou-lhe o pulso e iniciou com rapidez as respectivas massagens cardíacas. Durante aqueles infinitos segundos, uma miúda que estava próxima do acontecimento gritou no meio de um daqueles intervalos inexplicáveis de silêncio – Não carregue com muita força que o homem tem um coração de plástico, pode-se escangalhar! Alguns dos presentes esboçaram alguns sorrisos amarelos. O médico Presidente da Republica olhou a postura incisiva da miúda e continuou mais uns segundos as fracassadas massagens. Tinha morrido o Coração de Plástico. Já tinham chegado os bombeiros e estavam a ultimar os preparativos para transportarem o cadáver para dentro da ambulância. Entre aqueles instantes, a mesma miúda lembrou-se que tinha em casa um coração de plástico cor-de-rosa de uma boneca que lhe tinham oferecido, penso que era BARBA, uma daquelas caixas-surpresa em forma de coração. Como a sua casa era relativamente próxima, num pequeno instante e já se encontrava novamente junto da maca com o fantasioso coração de plástico cor-de-rosa, colocando-o na mão do bombeiro e dizendo-lhe com uns olhos claros de aflição – Experimentem este! O bombeiro sorriu, mas levou-o consigo, disfarçando aceder ao seu fantasioso pedido com a devida profissionalidade. Depois de todos os procedimentos concluídos, na altura de colocarem o cadáver na urna, o bombeiro lembrou-se e decidiu colocar-lhe aquele insólito coração de plástico por dentro do casaco, encaixado no lugar eventual do outro verdadeiro ou falso que o médico Presidente da Republica tinha quebrado sem saber. Anos mais tarde, como o bombeiro nunca tinha contado a ninguém e como também já tinha falecido, quando o coveiro e as suas obrigações decidiram exumar o que restava dos restos do Gabriel, ao perfurar com a ponta da picareta aquela terra misturada com os restos daquele amontoado de ossos, roupa e pedaços apodrecidos de madeira do caixão, debruçou-se para apanhar alguns destes ossos e naquele singular gesto encarou com um intacto coração de plástico já quase sem cor. Atónito, guardou o dito coração e embrulhou-o num velho papel de jornal. No final do dia, como habitualmente fazia, dirigiu-se à taberna e gritou com uma voz rouca – Afinal era mesmo verdade, o Coração de Plástico tinha mesmo um coração de plástico e mostrou a todos o verdadeiro coração de plástico.











quarta-feira, novembro 26, 2008



the gunshy...grande...grande projecto musical..procurem..devorem..fascinem-se..

falta ainda dizer que este projecto (album) foi concluido com base num conjunto de cartas de amor escritas pelo avô do vocalista (mat) durante a segunda guerra mundial..

segunda-feira, novembro 24, 2008




(fotos eddy. 2007)


haverá sempre um luto que nos perpetua a solidão

domingo, novembro 23, 2008

alexis zorba...ou o bom demónio...de n. kazantzaki, um dos meus feitiçeiros favoritos...
terminei de ler este precioso livro com as lágrimas nos olhos. quando um livro nos provoca os sentidos cumpre em pleno a sua função, ou seja, a estranha função de imitar a vida...

"(...) há três especies de homens: os que tomam como objectivo viver, como eles dizem, a sua vida, comer, beber, amar, enriquecer, ganhar a celebridade. depois, há os que miram, não a sua própria existência, mas a de todos os homens. sentem que todos os homens constituem uma unidade e esforçam-se por os esclarecer, procurando amá-los e fazer-lhes todo o bem que podem. finalmente, há aqueles cujo o desejo é viver a vida do universo inteiro".



ALBARRACIN



albarracin (teruel-espanha) é um daqueles lugares mágicos, tudo respira esse lado misterioso de outros tempos. a sua caracteristica arquitectura marca de facto a diferença. casas de três pisos, construidas com o recurso da preciosa madeira de castanho. trata-se de um lugar a visitar impreterivelmente...

sexta-feira, novembro 21, 2008

A FORÇA DA IGNORÂNCIA

todos assistimos dia após dia, mês após mês, ano após ano, desde a invasão imperial dos EUA e da GB ao iraque, a discursos sensasionalistas, triunfalistas, onde imperam as generalizações humilhantes sobre o "outro" muçulmano. assistimos de igual modo impávidos e serenos ao saque e à pilhagem e destruição de uma cultura milenar (roubo de bibliotecas e museus). acredita-se que se pode rasurar a História com uma esponja para escrever a "nossa" e assim impor à força as "nossas" próprias formas de vida de modo a que os "outros", os maus, as interiorizem, as prescrevam. como se pode ignorar uma cultura milenar, uma espantosa diversidade de culturas humanas, linguas e experiências? a troco de quê?
todos nós sabemos a suposta verdade, porém é a mentira que continua a vender discursos triunfalistas nos telejornais de todas as televisões do mundo (outro negócio chorudo!). continuamos a assistir impávidos e serenos a discursos proferidos por chefes de Estado que falam em nome da politica externa e não têm a minima noção da lingua e da cultura do "outro", ou seja, das pessoas reais. veja-se a quantidade de livros produzidos sobre o islão, o terrorismo, o eixo do mal, etc, etc...lixo e mais lixo...negócio e mais negócio...os senhores dos negócios das guerras...
porém, continuamos à espera da tremenda falácia das armas destruição..tenho a plena certeza, se o iraque fosse o maior exportador mundial de ovelhas e cabras, de certeza que nenhuma guerra, nenhum eixo mal, nem nenhuma histeria contra o "outro" sucederia.
está mais que claro a rede de negócios montada com base na força, aliás, a única linguagem que entendem estes empresários sem escrupulos. por acaso já alguém pensou na fantástica e prospera venda de manuais escolares nestes paises invadidos pela força?
em suma, quem compra todos estes discursos imperialistas e esquece todo o sofrimento humano que uma guerra acarreta, é considerado e aclamado neste controverso mundo ocidental, como um bom democrata, um bom cidadão...

sábado, novembro 15, 2008

BAIRRO DOS LOUCEIROS




(fotos Eddy, 2008)


a vila de idanha-a-nova, conjuntamente com a aldeia da zebreira, constituiram outrora vigorosos centros de produção oleira. nestes característicos fornos, situados no Bairro dos Louceiros, num dos topos da vila de Idanha, coziam-se todo o tipo de louça utilitária. com base neste vantajoso comércio, estabeleceram-se importantes redes de negócio, que se tornaram capitais na estruturação da economia local. muito do que se sabe hoje deste histórico labor e das suas respectivas redes e fluxos, deve-se fundamentalmente ao estudo do meu colega e amigo paulo longo, antropólogo na câmara municipal de idanha. aliás, deste estudo, resultou uma exposição e o seu respectivo catálogo, onde se pode vislumbrar a insigne colecção. este catálogo pode ser adquirido no centro cultural raiano.

domingo, novembro 09, 2008

O ADUFE. ESSE SIMBOLO IDENTITÁRIO E PATRIMONIAL



(Ti maria, Monfortinho, 2008)


o adufe, esse ancestral instrumento musical oriundo do norte de africa, é hoje em toda a beira baixa um simbolo identitário, fruto de inúmeras tentativas de activação patrimonial. A ele estão ligadas as festas sagradas e profanas, os interiores domésticos, a construção da alteridade, a construção de genero, as activações politico-patrimoniais, enfim, ele é o cerne dos discursos em torno das identidades ditas raianas. contudo, convém referir que o adufe não se autodetermina a ele mesmo enquanto simbolo identitário e patrimonial, trata-se de uma representação para quem o enuncia. portanto, se estivermos atentos ao devir do tempo, vamos encontrar, nas diversas sociedades onde ele adquire protagonismo e funcionalidade, ou seja, nas ditas sociedades raianas, diversas formas de o representar, ou seja, de o "patrimonializar". a tendência paradoxal é "essencializar" este património e esta identidade como algo estático, enraizado desde a noite dos tempos nas respectivas regiões. aliás, como acontece com a maioria das activações patrimoniais, entendidas como um valor primordial que deve ser valorizado e difundido. como um bloco homogeneo, alicerçado nos discursos essencialistas da defesa e salvaguarda de algo que se pode perder para todo o sempre. Daí, a panóplia de comemorações, encontros gastronómicos, recuperação de mitos locais, festas, jogos e rituais populares. tudo isto e mais alguma coisa acende e activa todo um discurso de "invenção" de umas tradições. à luz destas narrativas efabulatórias de etnoculturas únicas, forjam-se importantes redes de negócios culturais. em suma e regressando ao simbólico adufe, como para além do seu toque encantatório e mistico, se constroi e se reinventa essa dita "comunidade imaginada", como ele se pode constituir enquanto objecto de estudo capital para o entendimento de uma história social.

domingo, novembro 02, 2008

O REMOTO FOGO PRIMORDIAL...



entramos num dos periodos do ano mais obscuros: os dias estão mais pequenos e as noites prolongam-se frias e solitárias. já cheira a fumo nas ruas, este forte aroma entranha-se no mais profundo das memórias e traz recordações remotas. é enigmática a nossa relação com o fogo, pois o fogo regenera, purifica e destroi. em torno dele se congregam ainda muitas familias deste portugal dito rural. celebram-se inúmeras festividades em torno do fogo: o natal, o S. João, Pentecoste, etc. segundo algumas lendas, Cristo (e os Santos) revivificam os corpos passando-os pelo fogo da fornalha da forja. o Homem é fogo, diz S. Martinho. ao aspecto destruidor do fogo estão subjacente todas as forças malignas ou seja diabólicas, lucifer (portador da luz celeste) arrojado nas chamas do inferno, um fogo que queima sem consumir. em suma, a origem da humanidade deve-se essencialmente à força deste remoto enigma, o FOGO.