quarta-feira, novembro 07, 2007

Ti DOMINGOS: O PASTOR FILOSOFO


Ti Domingos "Menoucho", pastor, Penha Garcia (Falecido)

Há muito tempo que na minha cabeça pairava a ideia de fazer aqui, neste lugar virtual, uma sentida homenagem a alguns pastores com quem passei horas extraordinárias de aprendizagem e que, entretanto, já partiram deste efemero mundo.
Conheci o Ti Domingos numa tarde clara de Abril, passava na estrada e vi o seu rebanho de cabras a pastar ali próximo. Parei o carro e dirigi-me a uma pessoa que estava solenemente apoiada no seu cajado, depois de me apresentar e de lhe pôr ao corrente do meu árduo labor, consentiu de imediato a minha presença e o rol das infinitas perguntas que sempre trago nos meus pequenos cadernos pretos. Enquanto as perguntas e as respostas fluiam, as suas cabras pastavam calmamente a fresca erva que a serra oferecia. Falou do mundo, da morte, das guerras, da sua querida Penha Garcia, das filhas, das cidades, das suas cabras e dos dificieis partos que já tinha assistido, das doenças das cabras que tinha milagrosamente curado, das mulheres, do seu queijinho que fazia todos os dias com a maior das dedicações. Recordo com saudade uma terna conversa:

"Comecei esta vida de pastor aos 6 anos ao pé do mê pai. Dantes o mê pai era munto recto para nós, pois coitadinho, ele não tinha nada para nos dar a comer e pedia-nos a morte, tinha vontade que morrêssemos, quer dizer, cobiçava a vida dessas pessoas que não tinham filhos. Não tinham filhos, não tinham despesas! era o atraso. Estamos os seis vivos. Depois aos 8 anos começei a guardar porcos, andava com outros, batiam-me munto. O mê pai era cabrero , aprendi com ele. Nessa altura começei a guardar porcos na Espanha, logo por cima das Termas. O mê pai fez-me na Espanha, poi era cabrero lá. O mê avô estava aqui na parte de cá, a minha mãe foi lá a desovar. A minha avó era partera e ódepoi o mê avô dizia-me assim: tinha lá um cortiço para pôr coisas, como esses das abelhas, mas maior. - Olha tu nasces-te aqui ao pé deste côrtcho. Depois só vim para Portugal tinha 16 anos, começei a andar com uma junta de vacas e a fazer vida de ganhão. ódepoi, já adulto a minha mulher morreu e as filhas já se tinham casado, agarrei-me às cabrinhas. Há 42 anos que aqui estou no Gorralão. As serras da frente são a Pedraninha, a Matafome e a Borrasca, ali mai adiante é Brejos. Antigamente pagava por aqui estar 100 alqueires de trigo. Era a renda anual, era de S. Miguel e S. Miguel.

(Entretanto começa a merendar: pão, chouriço e o seu famoso queijinho de cabra. Tudo cortado à navalha. Estamos sentados atrás de uma velha casa)

A minha vida foi assim, trabalhar munto. Andei no contrabando do café com 30 quilos às costas, ódepoi aborreci-me, começei a andar com as pernas escorralhadas em cima do cavalo. Olhe, podia-me ter matado afogado lá no rio, passavamos lá num sítio, na Espanha, aquilo eram umas fragas, quando era de Inverno aquilo ajuntava ali munta água, nós passavamos num sítio ruim, se caíssemos não havia salvação. Levavamos café para lá. Afogaram-se alguns, mas não eram daqui. Um secalhar até o mataram, os espanhois vinham ao nosso encontro. O café umas vezes era mai caro outras mai barato. É assim a minha vida, agora estou aqui, conheço esta serra toda!"

(Extracto do Diário de Campo nº3, 27 Abril de 2005)

3 comentários:

Anónimo disse...

Eu nasci José, nome do pai, depois Domingos, o outro o pai ritual, como os antropólogos chamam ao padrinho , depois acrescentaram-se os apelidos. Tudo tinha de rimar bem, ao gosto de genealogia mais àrdua, laboriosa ou mais elegante. Depois fui eu que escolhi, e ficou Zé, os dois nomes proprios para formalidades e admoestações. Tenho gado nos olhos há mais de quatro gerações,conhecimento que mal sei recuperar, só se perguntado. Quando vejo um pastor comovo-me sempre,nunca seria um bom antropólogo : mas poderia falar da lã , da pastagem, do aprisco, do amojar, das escolhas, das matanças , dos rituais com carne de borrego em que não comia, Lembro-me da gulosa, da murcha da trocada.... Meu pai tina encontros com outros pastores avaliava-se tudo e trocava-se, recebia-se borregos para o desmame. Em 1975 meu pai soube que eu não queria ser pastor estava na linha da sucessão, e eu disse não. Vendeu tudo e eu saí de madrugada muito cedo queria ir á praia. Chorei sozinho... Hoje pude lembrar o ti Domingos, que poderia ter sido meu avô ou bisavõ paterno e falar com ele, como o meu caro o fez , talvez não desconfio se o conseguiria... Não sei . Digo sim e não , Bem haja pela recordação saudável que me traz! um abraço JDRM

eddy disse...

Caro amigo,

Ao ler o seu comentário fiquei, por momentos, extraordináriamente silêncioso, pela história simples e triste, mas também pela enorme carga sentimental que os pastores representam para si e para mais um milhão de portugueses.

Bem hajas e volte sempre, filho e amigo dos pastores.

Al Cardoso disse...

Pois e, muitas vezes aprendemos mais com com os iletrados do que com os cultos!

Adorei ler este artigo, bem haja!

Um abraco d'Algodres.