da colectânea de contos "a morte, a minha princesa"
eddy chambino
o coração de plástico
“Blitch mnic tri bur trom desawer trunccmippfret”. Soletrava este estranho alfabeto ao mesmo tempo que vincava as profundas rugas da pele amarelada do rosto com um sorriso leve. – Esta língua só eu a sei falar. Dizia para os jovens que estavam sentados à sombra do velho choupo e que balbuciavam a sua alcunha – Malta, malta, chegou o Coração de Plástico! Os jovens riam-se e metiam-se com ele, que seguia com o seu passo curto e lento com um balde na mão, cheio de farelo misturado com restos de fruta e vegetais na direcção do galinheiro. De regresso, já vinha mais equilibrado, o balde vinha vazio e a singular postura tinha ocupado o volume normal naquela rua íngreme. Uma das mãos vazias tinha regressado ao habitual pouso, que era no peito, sensivelmente por cima do lugar do coração, onde os quatro dedos ficavam no interior da roupa, ficando apenas de fora o polegar, ou seja, a mão ficava apoiada no botão central do velho casaco consumido pelos anos. Na cabeça, poisava há muitos anos um decrépito chapéu preto que teimava em permanecer ali para sempre. Ao passar pelo mesmo grupo, tornou a soletrar aquele alfabeto ficcionado. Depois de algumas explicações ocas e de algumas gargalhadas, um dos jovens fez-lhe a pergunta de sempre – Porquê que você anda sempre com essa mão ai enfiada no casaco? Até parece que anda sempre a esconder qualquer coisa? A sua postura ficou rígida e respondeu com um ar sério mesclado com tons de cores visionárias – Sabes rapazola, é que eu sou doente do coração, tenho um coração de plástico e tenho esta mania de o proteger, é um coração mas é também um coração frágil, fraquinho. Os jovens permaneceram durante um pequeno instante em silêncio a observa-lo, como se tivessem sido hipnotizados por aquelas estranhas palavras, mas de imediato o feitiço quebrou e um deles desatou a rir e todos recomeçaram a fanfarra de sempre – Você está a mentir, ninguém pode ter um coração de plástico, muito menos você. E continuaram a rir desmesuradamente. O Coração de Plástico retomou o seu rumo na direcção da rua principal, desceu a leve inclinação, passou pelo café e seguiu na direcção do adro da igreja. Depois de ter cruzado o amplo largo vazio e de ter tirado o decrépito chapéu em sinal de respeito junto à porta da igreja, acelerou o passo e foi cagar debaixo de uma oliveira, como habitualmente fazia e como desejava sempre fazer. Feitas as necessidades, rumou decidido a calcorrear as estreitas ruas até chegar a sua casa. A mulher já o esperava sentada no reduzido degrau da pequena casa. Quando vislumbrou a sua figura franzina na mira da esquina, soltou um dos seus berros característicos – São horas Gabriel? Os ovos já estão frios, agora comes a comida fria, pobre diabo! Ele apenas oscilou a cabeça no sentido do degrau da entrada da casa e dirigiu-se para a mesa onde estavam dois pequenos pratos tapados com um pano quadrado. Depois de comer a sua desatenção fria, mais uma vez, foi-se sentar próximo da mulher numa cadeira para ai cumprir o ritual de todas as noites, o ritual da televisão e do adormecimento. Ouviam atentamente as notícias do mundo. Os dois espantavam-se amiúde com este mundo televisionado, muitas vezes escancaravam os olhos em demasia e as imagens engasgavam-nos severamente, obrigando-os mesmo a fechar os olhos durante uns instantes para assim poderem mastigar toda aquela impossível realidade. Naquela continuidade noticiosa o locutor soletrou um nome que lhes era bastante familiar – Ouviste o que ele disse? Parece que falou no nome da nossa terra – Parece que sim, também o ouvi nomear o nome da nossa terra! Respondeu ele com o corpo inclinado para a frente e com um ar atento. Anunciava, o repórter da televisão, a presença no dia seguinte do Presidente da Republica para inaugurar o novo Mercado da Vila – Isto é amanhã às 10 horas, já tinha ouvido falar ali na Praça – Tu ouves falar de tudo, estás sempre com os ouvidos à escuta. Grunhiu ela com um ar sisudo. Tinham passado duas horas e o reflexo intermitente das imagens da televisão reflectia agora com violência naqueles dois rostos derrotados pela letargia da ocasião.
Na manhã seguinte, eram 7 horas e o Gabriel já estava pronto para sair de casa. Balbuciou algumas palavras matinais e fez-se ao caminho, com o balde do farelo e alguns restos, na direcção do galinheiro. Despachou-se num ápice e deixou o balde atrás da pequena porta, tinha intenção de voltar mais tarde, talvez depois da dita inauguração. Já na Praça ouviu dizer que havia comes e bebes e por ali ficou entretido a ouvir as conversas. O tique da mão enfiada no meio do casaco, em jeito de protecção do seu falso-verdadeiro-coração de plástico permanecia. Chegada a hora da dita inauguração as pessoas foram-se dirigindo para o referido local. Junto à porta, começaram a ocupar lugares estratégicos para poderem ver o importante acontecimento – Já chegaram os peixes graúdos, disse um dos transeuntes com uma cara de troça. Viu passar um grupo de homens bem vestidos, reconheceu o Presidente da Republica, acompanhado pelo Presidente da Vila conjuntamente com outras figuras conhecidas. Limitou-se a seguir a vertigem da corrente para dentro do novo edifício. Cheirava a tinta fresca. Já dentro da enorme sala, ouviu-se um discurso, bateu palmas e dirigiu-se para a mesa. Próximo da mesa começou a sentir-se mal, sentia tonturas que iam aumentando gradualmente a sua indisposição, uma dor aguda penetrou-lhe no peito e caiu inanimado. Uma multidão começou a oscilar até junto do seu frágil corpo – Desviem-se, deixem o homem respirar – Chamem uma ambulância – É o Coração de Plástico que desmaiou – Se calhar já bebeu demais. O fatídico acontecimento chegou ao Presidente da Republica, que era médico de profissão. Dirigiu-se rapidamente até ao lugar onde se amontoavam cada vez mais pessoas – Desviem-se, deixem passar o Senhor Presidente, ele é médico. Abriram a muito custo uma clareira para que o Presidente pudesse chegar ao respectivo corpo inanimado. Quando o vislumbrou, com aquela mão encaixada no peito, pálido, sentiu que algo lhe tinha acontecido de mais grave. Iniciou de imediato todos procedimentos médicos. Apalpou-lhe o pulso e iniciou com rapidez as respectivas massagens cardíacas. Durante aqueles infinitos segundos, uma miúda que estava próxima do acontecimento gritou no meio de um daqueles intervalos inexplicáveis de silêncio – Não carregue com muita força que o homem tem um coração de plástico, pode-se escangalhar! Alguns dos presentes esboçaram alguns sorrisos amarelos. O médico Presidente da Republica olhou a postura incisiva da miúda e continuou mais uns segundos as fracassadas massagens. Tinha morrido o Coração de Plástico. Já tinham chegado os bombeiros e estavam a ultimar os preparativos para transportarem o cadáver para dentro da ambulância. Entre aqueles instantes, a mesma miúda lembrou-se que tinha em casa um coração de plástico cor-de-rosa de uma boneca que lhe tinham oferecido, penso que era BARBA, uma daquelas caixas-surpresa em forma de coração. Como a sua casa era relativamente próxima, num pequeno instante e já se encontrava novamente junto da maca com o fantasioso coração de plástico cor-de-rosa, colocando-o na mão do bombeiro e dizendo-lhe com uns olhos claros de aflição – Experimentem este! O bombeiro sorriu, mas levou-o consigo, disfarçando aceder ao seu fantasioso pedido com a devida profissionalidade. Depois de todos os procedimentos concluídos, na altura de colocarem o cadáver na urna, o bombeiro lembrou-se e decidiu colocar-lhe aquele insólito coração de plástico por dentro do casaco, encaixado no lugar eventual do outro verdadeiro ou falso que o médico Presidente da Republica tinha quebrado sem saber. Anos mais tarde, como o bombeiro nunca tinha contado a ninguém e como também já tinha falecido, quando o coveiro e as suas obrigações decidiram exumar o que restava dos restos do Gabriel, ao perfurar com a ponta da picareta aquela terra misturada com os restos daquele amontoado de ossos, roupa e pedaços apodrecidos de madeira do caixão, debruçou-se para apanhar alguns destes ossos e naquele singular gesto encarou com um intacto coração de plástico já quase sem cor. Atónito, guardou o dito coração e embrulhou-o num velho papel de jornal. No final do dia, como habitualmente fazia, dirigiu-se à taberna e gritou com uma voz rouca – Afinal era mesmo verdade, o Coração de Plástico tinha mesmo um coração de plástico e mostrou a todos o verdadeiro coração de plástico.