Entrevista ao Ti Zé Lourenço, 2005.
Pastores transumantes, Ti Zé Camilo e Ti Zé Lourenço, 2005.
Estamos no mês de Novembro e era precisamente durante este mês que os rebanhos da Serra da Estrela iniciavam a sua lenta e melodiosa marcha até aos verdejantes campos do concelho de Idanha-a-Nova. A este tão remoto e ancestral movimento pastoril, intitula-se de TRANSUMÂNCIA, etimologicamente significa: TRANS - "além de" e HUMUS - "terra", ou seja, "ir além da terra". Por outras palavras resume-se a uma deslocação periodica de gados entre dois regimes determinados de clima diferente. Um identificado como invernal e descendente, quando, face à escassez de pastos causada pelas neves das terras altas, os rebanhos desciam para os pastos das regiões mais amenas. O outro, estival ou ascendente, caracterizado pela deslocação de rebanhos para as terras altas. O grande mestre Orlando Ribeiro descreve do seguinte modo uma Invernada dos serranos para os campos da Idanha:
"(...) É pelos Santos que o grosso dos rebanhos deixa a Serra. Dantes um maioral tomava entrega dos gados de toda a povoação; quando voltava faziam-se as contas dos gastos e repartia-se a quantia proporcionalmente ao gado que cada um tinha mandado. Hoje uma só aldeia pode mandar vários rebanhos, que raro atingem mais de 1500 cabeças. O lugar de invernada para os gados do Sabugueiro e, de um modo geral, para os da zona mais elevada da Serra, é nas Campanhas da Idanha. O itenerário do Sabugueiro até lá, a via pecuária mais importante da região, passa através da Serra, quando o tempo o permite (em direcção a Cântaro e à Nave de Santo António), ou contornando-a por Valezim, Loriga, Alvoco, Unhais até ao Tortozendo. Atravessam a fértil Cova da Beira e, pelo Fundão, galgam a cumeada da Gardunha. Por Alpedrinha, Vale dos Prazeres, ainda encostados à montanha, entram no Campo, e por Orca, S. Miguel de Acha e Oledo ganham Idanha-a-Nova. Alguns pastores ficaram pelo caminho, arrendando pastos para os gados onde lhes pareceu que os havia abundantes."
Relativamente à composição, práticas e quotidiano deste impressionante "exército", Ferreira de Castro no seu romance A lã e a neve, descreve de uma forma notável e impressionante, esta ancestral prática:
"(...) Era a época em que, anualmente, se iniciava a transumância, levando-se o gado para longínquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia a caminhada dali até à Idanha, fora o do Canholas, com ovelhas de mais quatro pastores. Outros partiram depois (...) eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. À frente e aos lados, mantinham guarda o "Lanzudo" e outros cães, menos o "Piloto", que fora considerado débil para a longa jornada. Atrás marchavam Horácio, o Tónio, o Aniceto, o Libânio, o filho do tio Jerónimo, e um burro por cada homem. Os onagros transportavam bardos e ferradas; e os seus alforges, com alimentos no fundo, guardavam espaço para recolha de cordeiros que dessem em nascer, como sempre acontecia, durante o trânsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muito juntas no seu passo curto, se os gritos ou pedradas a isso impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e cortavam à esquerda e à direita, à cata do pasto vizinho da estrada. Às vezes, os seus focinhos orientavam-se para a folhagem que tinha dono sempre pronto a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas e até de multas policiais, outras pedras e outros berros caíam sobre as famintas, que retomavam o caminho, na esperança de serem, além, mais felizes. (...) Finalmente, ao sétimo dia, vencida a estrada imensa, cruzando vales, grimpando serras, os condutores do rebanho transumante, todos sujos, cara negra de barba, corpos esgotados pela andança, viram, ao longe, as campinas da Idanha, seu último objectivo."
Era, de facto, um impressionante espectáculo! Hoje, restam as poucas ou nenhumas memórias desta árdua caminhada. Ainda assim, foi possivel encontrar alguns testemunhos vivos, deixo-vos uma memória viva, o PastorTransumante, José Lourenço :
"Tinha 30 anos quando começei a ir com o gado para a Idanha. Em primeiro iam umas 150 ou 200, depois iam as outras mais tarde. As mais borreguinhas iam primeiro e mais tarde ia o vazio. Eram as borreguinhas que tinhamos criado no ano anterior, os carneiros e assim; a gente chamava o "alfeire" ao vazio. Os pastores que iam eram conforme o gado, às vezes iamos 4, outras 5; um burrinho para levar a merenda, pão, toucinho, que era para todo o inverno. Quando chegavamos lá tratavamos da mulher para comprar a farinha para o pão e depois a gente ia lá a buscar. O caminho era quase sempre pelo Vale Formoso. Depois iamos para a Capinha, daqui iamos para o Pedrogão, depois daqui a gente passava para lá. A gente não tinha sítio certo, a primeira noite, dormiamos quase sempre nas Murteiras Redondas, era logo ali ao cimo da Idanha. Depois iamos para o sítio que tinhamos comprado, era ali na Vigia, no Lemite e no Vale de Couto ali por baixo da Sª da Graça. A gente dormia em qualquer lado enrolado na capa. Também íamos para a Barragem, íamos pela quelha. Eu sem gado cheguei a ir para cima, numa noite estava no Oledo, vim a dormir à Orca, depois Fundão até Manteigas. Num inverno fui lá três vezes à Idanha, três vezes para baixo sem gado, num dia ia para cima. O Manel Moita era meu amigo, eu estava na Vigia e ele no Cabeço das Canas. Arrendava-se a três meses. Quando a gente ia lá a arrendar era em Agosto, íamos ao Campo a comprar a pastagem. As contas eram feitas à cabeça, cada um pagava um tanto por cabeça. Tive lá anos de 40 contos em despesa, tudo incluido. Ao fim entrava tudo em conta."
(Extracto do Diário de campo nº5, Julho de 5)
- Pastor transumante, José Lourenço, 92 anos, Manteigas)
Bibliografia
Castro, Ferreira (1990). A lã e a neve. Guimarães editores, Lisboa.
Ribeiro, Orlando (1995). Opúsculos geográficos. Estudos regionais, Fundação C. Gulbenkian, Lisboa.